CONTOS DA VIDA BREVE
Henrique Schneider manteve, entre 2003 e 2017, a coluna Vida Breve no jornal ABC Domingo, do Grupo Sinos. Aproximadamente 70 mil exemplares que circulam no Vale do Sinos e região Metropolitana de Porto Alegre. Semana a semana, publicou os contos que escrevia especialmente para o periódico.

São crônicas do dia a dia, como o próprio título sugere, que abordam com bom humor e inteligência dilemas da sociedade contemporânea. Ou pós-moderna, como queiram. Um espaço nobre. Público leitor em potencial considerável, na medida em que o acesso à literatura ainda é restrito no país.

Aqui você encontra um pouco do que foi publicado.

 




AS TEIMOSIAS

Quando ela gritou que, se ele cruzasse a fronteira dura daquela porta, nunca mais o olharia no rosto e que nem pensasse em voltar, era tarde; ele já era inteiro um passo apressado e decidido de saída, e interromper-se naquele instante pareceria demasiada capitulação. Ele então afundou a força das pisadas, estalos desafiantes no assoalho, e bateu a porta com a força do seu teatro, orgulho desabrido e bobo, como se aquilo fosse a única coisa a fazer.

Cego e surdo, ele talvez esperasse algum choro repentino, desculpa de arrependimento, pedido tormentoso a que ficasse, mas nada.

Cega e surda, ela talvez esperasse o freio no passo, um suspiro de pensar duas vezes, o sorriso arrependido, mas nada.

Leva todas tuas tralhas contigo, ainda gritou ela, sem levantar-se do sofá onde estava e ligando a televisão apenas por ligar; ele respondeu que não precisava, que ia comprar tudo novo, não queria nada que o fizesse lembrar do inferno desta casa, as palavras todas sem maior convicção e torcendo para que ela não ouvisse e concordasse, quando já estava com um pé na noite e outro na rua.

Não volta mais, nunca mais, repetiu ela, furiosa, como se precisasse reforçar a negativa, sublinhá-la como se os espaços dele estivessem imediatamente preenchidos desde então, as gavetas, o lugar na mesa, o canto amoldado do sofá em frente à televisão, o sabonete de erva doce, o copo bojudo para o vinho, os livros todos na estante, o lado esquerdo da cama, as roupas em desalinho, o travesseiro amassado, o despertador sempre às sete. Com a mesma fúria da mulher, ele escutou a ordem a atravessar a escuridão morna daquela noite, chamando todos os vizinhos da rua para dentro de mais outra briga, e pensou que o melhor seria não responder nada. Se respondesse, pensou, toda a vizinhança saberia que ele não queria mesmo voltar.

Se ela saísse um instante de sua cisma e fosse espiar à janela, teria percebido os passos duros do companheiro se distanciando, resolutos e fortes, o barulho de quem parece saber bem o que quer. Mas se permanecesse ainda um pouco na janela, mesmo que escondida atrás das cortinas transparentes, também perceberia que a força dos passos sumira e o barulho terminara logo na esquina, refugiado sob a luz amarela e fugidia do poste.

E se ele olhasse para trás em seus passos bestas e a houvesse divisado sob a moldura fraca e penumbrosa da janela, talvez percebesse que os gritos dela tinham menos verdade do que volume, eram mais cena do que vida.

Mas seguiram ambos em suas teimosias. Nem ela foi à janela, nem ele olhou para trás.

É por isso que, apoiado no poste e escondido sob a luz, ele chora porque não sabe o que fazer e nem para onde ir, enquanto ela, sentada no sofá de onde ainda não se mexeu e nem se mexerá, apenas assiste a TV sem assistir e chora com a mesma intensidade, enquanto olha a porta de entrada e espera.


 

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