AINDA

Ele se aproxima do espelho côncavo da loja de brinquedos em que foi comprar presente para o neto e, de repente, decide examinar-se com um pouco mais de atenção. Ainda que as linhas do rosto e do corpo lhe sejam devolvidas com a graça grotesca do exagero, não é difícil enxergar no espelho aquilo que pretende ver.

Os cantos dos olhos possuem as rugas que os seus setenta anos devem mesmo ter, caminhos flácidos que correm como rios grossos em direção aos cabelos – mas o brilho do olhar segue parecendo o mesmo de quando ganhara o primeiro carrinho de lata. E as orelhas, ainda que sejam uma abundância de cabelos brancos num par de lóbulos que parece não ter fim, ainda conseguem, com algum esforço, dar aquela tremida que arrancava gargalhadas dos amigos infantes. No nariz, as manchas escuras atestam seus setenta anos de vida – mas então ele volta aos sete quando, disfarçadamente e sem que ninguém na loja perceba, cavoca com o dedo uma das narinas – a mãe sempre se exasperava com isso. Na boca, a dentadura um pouco grande não chega a disfarçar bem os dentes faltantes, mas quando coloca a língua para o espelho é exatamente igual ao tempo em que enfurecia a irmã e as primas mais velhas. E o sorriso, quando lembra disso, tem o mesmo ar satisfeito de quando subia na goiabeira nos fundos da casa e lá ficava até se fartar.

Ainda dá, ele pensa. Deixa só testar mais um pouco.

Estende o braço para enxergar melhor a mão. É um punhado de veinhas acinzentadas e finas pintalgando a pele cansada e bordada de calosidades antigas. Mas quando junta as mãos uma à outra, ainda é com a mesma destreza que constrói os camelos, cachorros e pombas em vôo cujas sombras encheram tantos lençóis brancos em salas iluminadas à luz de velas.

Então tenta o teste final.

Posta-se com as pernas juntas, bem alinhadas e tão firmes quanto possível. Num impulso rápido, salta reto para cima e, no ar, sacode as pernas de um lado ao outro, como faziam os palhaços dos cirquinhos de lona que bem povoavam sua infância. Consegue fazer um movimento inteiro antes de voltar ao chão. Certamente terá dores nos joelhos, mais tarde - mas ainda não, agora não.

Então dá, sim – ele decide. E vai fazer.

Dá para comprar para si mesmo um presente para o Dia da Criança.

Afinal, pensa, ele ainda merece.


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