A CIDADE EM OLHOS DE PASSADO

Vive em mim a cidade onde vivo.

Porque o meu lugar preferido são minhas memórias. São olhos generosos, estes meus, a mirar o passado. A casa em que cresci, a rua de paralelepípedos que subia o morro mais alto do meu mundo e que só acabava no campinho de futebol da escola, onde suávamos atrás de uma bola de futebol como se daquele jogo dependessem nossas vidas. Depois, regávamos o suadouro com os cristais de água da vertente ao lado de minha casa. A agência do banco, logo à esquina, onde, aos seis anos, trabalhei como vigia: ficávamos eu e meu irmão, postados ao lado da porta, e qualquer um que entrasse precisava mostrar um documento. Éramos rígidos e só valiam os documentos importantes: um papel rabiscado, chaves, folhetos de propaganda, a mão vazia. O salário era pago em balas.

O armazém próximo à casa e as compotas doces que eram festas de cores e aromas, a maciez do feijão e do milho a granel nos sacos de juta em que mergulhávamos nossas mãos infantes. Todas as casas dos avós: cheiros de cuca e de cueca virada, o pires com três fatias de bolo atravessando a cerca sob um paninho de prato rendado. Íamos de ônibus até a casa dos avós, atravessávamos a cidade inteira e minha mãe descia da viagem que atravessava a rodovia tão bonita e elegante como quando havia entrado. A banca de revista onde se podia folhar páginas de maravilhas e em cujas generosidades talvez se inicie a minha vontade tanta de ler e de escrever. As bancas e a vitamina com sorvete, o pão com nata e linguiça salvando tantos da bebedeira na madrugada de sábado. Os cinemas disputando suas matinês dominicais com filmes americanos. O abraço que levei, tremendo de medo, de um dos louquinhos queridos que moravam pela cidade, só para descobrir que ela era tão criança quanto eu. E os cafés, onde todas as histórias da cidade se contavam ou eram inventadas, e nos quais meu pai, de tanto freqüentá-los, devia ser sócio remido.

Fecho os olhos e esta cidade ainda mora em mim, lugar da infância.

Fecho os olhos e esta cidade mora em mim também para sempre.


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