O RETRATO
Ainda que fosse ela o centro da mudança, ninguém lhe prestava atenção. Mudava hoje da casa em que vivera nos últimos quarenta e cinco anos para um apartamento: os filhos achavam mais seguro à sua viuvez solitária. Os homens da transportadora corriam de um lado para o outro e ela, miúda, apenas queria que suas quase oito décadas de fragilidade não atrapalhassem.
No meio de todas as caixas e pacotes, de repente o álbum.
Julieta tremeu, em surpresa renascida: era o seu álbum único. Nos demais, estavam as fotos da família, do casamento, aniversários dos filhos, as formaturas, as lembranças guardadas das viagens mais queridas, às quais, vez por outra, espiasse para sorrir e chorar. Mas aquele álbum era o mais importante, era apenas dela - o invólucro marchetado em que Julieta guardava a pele lisa de sua juventude.
Começou a folhear o álbum e surpreendeu-se com a beleza daquela menina quando tinha vinte anos – as fotos teriam mais de meio século. Na primeira comunhão, menina com um cachorro ao lado, sentada de pernas cruzadas no banco de uma praça, tocando piano, pronta para um jantar de gala, posando para o fotógrafo com o olhar distante de quem finge não perceber.
E foi esta a foto, relembrada, a impactá-la.
Julieta mira algo além da câmara e por trás de seu rosto não há nada senão as cortinas do estúdio. A fotografia enquadra apenas a parte superior do corpo, o rosto e um pedaço do colo, nada mais. A modelo – ao menos é isso o que enxerga, cinquenta e tantos anos depois – parece feliz em seu vestido claro, ressaltado pela escuridão do fundo, e em seu pescoço refulge um colar de pérolas delicadas, daqueles que só podem ser usados em ocasiões escolhidas. Há uma espécie de luminosidade ao redor da face, certamente trabalhada pelas mãos competentes do fotógrafo, e esta luz permite que se perceba com mais nitidez a linha suave da maquilagem, a regularidade dos dentes expostos num meio-sorriso, os traços bem feitos, a teara estreita represando uns cabelos que seriam naturalmente revoltos, a intensidad e quente do olhar falsamente perdido: Julieta era mesmo bonita em seus vinte anos.
Ela olha a fotografia como se nunca antes a houvesse visto, como se nunca antes se houvesse visto. Depois olha ao seu redor: está ali um pouco de sua vida, encaixotada. Não era hoje o dia certo para olhar fotografias.
Aquela menina bonita, onde está? – pensa Julieta, enquanto um dos rapazes da transportadora pede, educadamente, que ela saia do caminho.
Outros Contos
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