DOIS SILÊNCIOS

São dois silêncios que se olham.

É incisivo, o do garçom; o do cliente, não: o homem parece sequer perceber o que há ao seu redor.

O olhar do garçom tem lá suas razões: são duas e meia da manhã neste bar de madrugadas, e, por razões que ninguém sabe, o lugar está quase vazio: apenas o homem na mesa ao lado da janela, bebendo solitária dose de uísque barato. O garçom leva mais de vinte anos de profissão e sabe quão valiosas são as noites em que consegue descansar mais cedo, e agora só o que pensa é que, não fosse aquele bebedor sem nome ou expressão, já poderia estar em casa, dormindo ao lado da mulher o sono dos justos. Debruçado sobre o balcão, toalha branca pendurada no braço quase que por costume, ele sente sobre os ombros o peso inexato destas duas décadas e olha para aquele cliente desejando apenas que ele vá embora. Este uísque, o homem bebe sem pressa há quase uma hora, sabe-se lá o que estará pensando – mas o garçom não quer saber. Não quer s er o psicólogo que dizem que todo o bom garçom é, não quer entender o silêncio carregado que vem daquele mesa. Só quer ir embora.

Mas o cliente parece não querer. Bebe sem pressa e sem prazer, como se fosse uma obrigação, e olha para o garçom com um olhar que atravessa paredes sem perceber. É um olhar sem rumo que, vez por outra, levanta o copo e sorve um gole deste uísque de gosto perdido. Uma hora bebendo deste mesmo copo. Talvez hoje ele tenha perdido o emprego, a grande oportunidade de sua vida, talvez hoje tenha perdido a mulher, quem sabe. Ou talvez seja alguma tristeza pura e simples, algumas pessoas têm mesmo esta vocação de ser tristes. Talvez.

De repente, o cliente se levanta e o garçom se anima; se o homem pedir a conta agora, ainda haverá tempo de pegar na cama o calor benfazejo da esposa. Mas não: o outro apenas segue em direção ao banheiros, passos mais tímidos que trôpegos. O garçom tem vontade de aproveitar aquela ausência indecisa, ir até a mesa e jogar fora aquela água suja que o homem toma por uísque, forçá-lo a uma decisão. Mas só pensa, nem se mexe: nunca faria isso.

O homem então volta e examina o copo, parece imaginar o que o garçom havia imaginado. Então seus olhares se cruzam, indefinidos, e o garçom pergunta – por dever do ofício, porque faz isso há vinte anos, porque não sabe fazer de outro jeito – se o cliente deseja mais alguma coisa.

O homem olha novamente para o copo e parece pensar no que deseja. E então pede uma nova dose de uísque.

"É pra já, cavalheiro.” – diz o garçom, levando ao homem o outro copo.

E então os dois silêncios novamente se olham.


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